Quando foi sintetizada, no século 18, pelo químico Felix
Hoffman, a aspirina tinha como alvo pacientes de artrite. Não demorou, contudo,
para que o comprimido branco revelasse potencial no tratamento de diversos
males. Analgésico e antitérmico, o ácido acetilsalicílico (AAS) também protege
o coração, o sistema vascular e, de acordo com um corpo crescente de estudos,
poderá ser utilizado no combate ao câncer. Em um artigo publicado no
jornal Plos One, o epidemiologista Peter C. Elwood, do País de Gales, afirmou
que o remédio é capaz de reduzir em 20% a mortalidade por tumores malignos.
Contudo, não há comprovação suficiente, ainda, para prescrevê-lo com esse fim.
Na década de 1970, Elwood foi o primeiro a fazer a
relação entre o uso moderado (de 70mg a 100mg) de aspirina e a redução de risco
cardiovascular. No começo, houve desconfiança da classe médica. Com o tempo,
porém, o ácido acetilsalicílico passou a ser receitado rotineiramente nos
consultórios. O médico, da Universidade de Cardiff, continuou estudando as
propriedades do medicamento como integrante de um grupo de pesquisadores
independentes que investigam o papel do AAS na prevenção e no combate a
diversas doenças.
Para o trabalho divulgado neste mês, ele fez uma revisão
sistemática da literatura científica recente que tem a associação entre câncer
e aspirina como foco. No total, a equipe de Elwood avaliou 47 estudos, sendo
cinco randomizados — testes que compararam a eficácia do remédio à do placebo —
e o restante observacional, quando se tem um resultado, mas não se investiga a
relação de causa e efeito. Dessa vez, no lugar de pesquisar a prevenção, o
epidemiologista decidiu avaliar a redução de mortalidade em pessoas que já têm
a doença. Foram eleitos os cânceres colorretal, de próstata e de mama.
Mutação
No caso dos tumores de cólon, existem evidências sólidas
do papel protetor do ácido acetilsalicílico para um grupo específico de
pacientes. Tanto que, em dezembro, o órgão de saúde norte-americano que
estabelece diretrizes preventivas fez, pela primeira vez, uma recomendação para
que pessoas desse público conversem com seus médicos sobre a possibilidade de
usarem baixas doses de aspirina para se protegerem contra o câncer. A
associação do tumor colorretal com o medicamento foi fortalecida pelo trabalho
de revisão de Elwood: o índice de redução de mortalidade de pacientes com a
doença que usavam aspirina chegou a 25%.
De acordo com o médico, aparentemente, o papel da
aspirina nesses casos tem ligação direta com uma mutação no gene PIK3CA, que é
encontrado em até 50% dos pacientes de tumor colorretal. Segundo o oncologista
Paulo Lages, do Instituto Onco-Vida, há outra explicação possível para essa
relação: “A aspirina é um inibidor de uma enzima, a COX-2, que é uma das vias
do surgimento do câncer”, diz. O médico brasileiro lembra que, dos tumores
estudados no trabalho de Elwood, o colorretal é o único que, comprovadamente,
pode ser combatido pelo ácido acetilsalicílico e, ainda assim, na prevenção,
não no tratamento de pacientes já doentes. Nos outros dois tipos de tumor que
entraram no trabalho do britânico, de mama e próstata, a redução de mortalidade
foi de, respectivamente, 13% e 11%.
Cautela
Peter C. Elwood destaca, porém, que há importantes
limitações na pesquisa e que, portanto, não se pode ainda receitar a aspirina
na expectativa de que ela aumente a sobrevida dos pacientes — nem mesmo no caso
do tumor colorretal. “O que nós fizemos foi uma revisão de dezenas de trabalhos
que investigaram o papel da aspirina, ingerida em baixas dosagens e
concomitante ao tratamento tradicional. Em alguns deles, sugeriu-se, inclusive,
uma redução da metástase, que é uma das principais causas da mortalidade por
câncer. Mas muitos desses estudos tinham número muito pequeno de pacientes, e a
maioria dos artigos que investigamos não foi de estudos randomizados”,
reconhece.
Contudo, ele acredita que o potencial da AAS para
auxiliar no tratamento da doença deve ser levado a sério. “Principalmente no
caso do câncer colorretal, as evidências foram bastante convincentes. O câncer,
apesar dos avanços no diagnóstico e nos tratamentos observados nas últimas
décadas, é uma doença ainda com alto índice de letalidade. Por isso, precisamos
investir mais em novas abordagens capazes de interferir na mortalidade e na
incidência da doença”, diz. O médico considera urgente a necessidade de se
desenharem estudos clínicos controlados para se comprovar o papel da aspirina
no desenrolar de tumores. Em relação a um dos efeitos colaterais do medicamento
— o risco de sangramento interno —, Elwood afirma que não foram observados em
nenhum dos 47 trabalhos investigados ocorrência séria desse tipo.
Para Paulo Lages, do Instituto Onco-Vida, o artigo do
colega britânico de fato abre a porta para estudos randomizados que investiguem
se, de fato, a aspirina é capaz de reduzir a mortalidade de alguns tipos de
câncer. “Os dados que ele apresenta são provocativos. Mas, como o próprio autor
reconhece, há uma série de limitações metodológicas”, diz. “Também é importante
lembrar que, quando se fala sobre câncer, as pessoas têm de entender que não
existe uma única droga que possa curá-lo porque o que funciona muito para um
tipo de tumor pode não funcionar para o outro. Os mecanismos de surgimento são
diferentes, dependendo do tipo de câncer”, lembra.
Duas doses semanais
No mês passado, o epidemiologista Andrew T. Chan, do
Hospital Geral de Massachusetts, de Boston (EUA), encontrou associação entre o
uso da aspirina e uma redução da incidência de câncer. O trabalho, porém, foi observacional
e não se aprofundou sobre as causas dessa associação. Os autores pegaram dados
de 135.965 mulheres e homens que participaram de dois grandes estudos com
profissionais de saúde norte-americanos e foram acompanhados ao longo de 32
anos. Desses, 20.414 tiveram algum tipo de tumor maligno no período.
Ao analisar os hábitos de saúde dos participantes, que
foram documentados nos dois trabalhos, a equipe de Chan observou que o uso
regular da aspirina duas ou mais vezes por semana por pelo menos seis anos
estava associado a uma redução de 3% nos casos de todos os tipos de tumor,
sendo essa relação mais forte quanto aos cânceres do trato gastrointestinal
(15%) e colorretal (19%). Não houve redução significativa quanto a carcinomas
na mama, na próstata ou no pulmão. De acordo com o artigo, publicado na Revista
da Associação Médica Americana (Jama), é possível que a aspirina desempenhe
papéis ainda desconhecidos na prevenção ao câncer que precisam ser investigadas
mais a fundo.
“No caso de pessoas em risco de câncer colorretal, nós já
temos, nos Estados Unidos, diretrizes para recomendar a pacientes em risco que
tomem baixas doses de AAS, mas ainda não podemos fazer isso em relação ao
câncer em geral”, diz Chan. “Precisamos pesquisar mais o papel protetivo da
aspirina quanto a outros tipos de tumores, em especial os do trato
gastrointestinal, pois conseguimos encontrar um índice convincente de redução
de risco”.
O pesquisador ressalta ainda que a aspirina nunca será um
substituto de importantes mecanismos de prevenção, como colonoscopia e
endoscopia. “Mas ela pode se tornar uma ferramenta a mais. Eu acho que já
estamos em um ponto em que indivíduos com fatores de risco para câncer de
estômago, como histórico familiar, podem discutir com seus médicos a possibilidade
de tomar aspirina como forma de prevenção”, diz.
.
0 comentários:
Postar um comentário