Dizem os historiadores que a cidade é a maior e mais
bem-sucedida invenção do homem. Foram precisos 2,5 milhões de anos desde que o
Homo Habilis demonstrou que sabia construir e utilizar suas primeiras
ferramentas complementando suas limitações naturais até que o homem inventasse
a cidade. Com a cidade o homem deu um salto e evoluiu muito rápido, bastando 5
mil anos para pisar na Lua e poucos dias atrás fotografou um “buraco negro” a
50 milhões de anos-luz da Terra.
A invenção da cidade teve como condição essencial
uma outra invenção, a Civilização. Cidade e Civilização nasceram juntas e são
gêmeas xipófogas inseparáveis. Uma não vive sem a outra. A cidade é o locus da
Civilização, a qual por sua vez é condição indispensável para a existência da
cidade. E cidade e Civilização não existiriam se o homem não desse um salto
qualitativo também essencial, deixando de ser bárbaro para ser civilizado. Só
que enquanto a Barbárie supera a Selvageria, a Civilização não supera a
Barbárie, apenas a traveste com uma carapaça chamada Ética formada por leis,
normas, costumes, princípios religiosos e morais, cuja obediência passa a
interessar a todos pois sem ela a cidade não funciona, nem a Civilização.
Assim, por baixo da carapaça civilizatória persiste o
bárbaro, pronto para escapar, o que acontece quando os controles dos códigos
são afrouxados ou deixam de existir. O bárbaro deixa sua casca de civilizado e
vai destruir a cidade e a Civilização, local e condição incompatíveis com sua
existência. Só há uma forma do bárbaro retornar à sua armadura civilizatória:
submetê-lo de novo às normas, regras e padrões, obedecidos por todos. Para isso
existem as leis e suas penas.
Como considerar as cidades brasileiras e suas
condições de existência se de um modo geral vivemos em um ambiente de quase
barbárie, sem padrões legítimos de convivência e onde as autoridades
responsáveis pelos mecanismos de controle estão ausentes ou também se comportam
como bárbaros? No urbanismo a situação é trágica desde a fiscalização da
responsabilidade técnica profissional até a aplicação das normas dos planos
diretores, em especial as leis de uso e ocupação do solo e suas áreas de risco,
criminosa e crescentemente ocupadas ao arrepio da lei. Está claro que barbárie
dominou nossas cidades e a está destruindo sob o olhar acovardado ou criminoso
nosso e de seus gestores, vide as grandes tragédias que emocionam o país ou
mesmo as menores, cotidianas de pouco destaque mas que anualizadas são imensas.
Será que ninguém enxerga um conjunto de edifícios
sendo construído, ou uma favela em nítida expansão, agora até verticalmente, em
áreas de evidente risco, perceptível como tal até a um leigo? Alguém acredita
que uma cidade como o Rio de Janeiro, ou qualquer outra grande cidade
brasileira não disponha de uma carta geotécnica ou uma legislação para o uso e
a ocupação do solo urbano, mais de 30 anos após a Constituição determinar que a
tivessem? Onde estão os órgãos responsáveis em zelar pelas boas práticas
da Engenharia, Arquitetura e Urbanismo no país? Pergunto envergonhado como
conselheiro de um deles. E as prefeituras? Os prefeitos? Os ministérios
públicos? A Justiça? Onde estão as responsabilidades? As cidades que
historicamente se revelam tão importantes na promoção da humanidade, no Brasil
se transformaram em assassinas de seu próprio povo. Ao arquiteto e urbanista
brasileiro que por formação tem o dever de entender, trabalhar e ao menos
denunciar estes tétricos cenários, só lhe resta emprestar o grito desesperado
de Castro Alves: “Meu Deus, meu Deus, mas que bandeira é esta que impudente na
gávea tripudia?... Antes te houvessem roto na batalha, que servires a um povo
de mortalha.”
José Antonio Lemos dos Santos é arquiteto e urbanista, conselheiro do CAU/MT,
acadêmico da AAU/MT e professor universitário aposentado.
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